Entrevista



Luís Wesley de Souza - O pentecostalismo e a teologia



Por Jamierson Oliveira

Luís Wesley de Souza é o primeiro pastor latino-americano a conseguir o título de doutor (Ph.D.) em estudos interculturais pela E. Stanley Jones School of World Mission and Evangelism - Asbury Theological Seminary (Kentucky, EUA). Como pastor metodista, teólogo e conferencista, tem contribuído significativamente no estudo das seguintes áreas: Evangelho e Cultura, História da Teologia e prática da Missão e Plantação de Igreja. Entre outras atividades no Brasil, atua também como membro Comitê de Lausanne (Suíça) para Evangelização Mundial, além de ser vice-presidente da World Methodist Historical Society (WMHS) e membro da American Society of Missiology (ASM). Nesta brilhante entrevista concedida à Defesa da Fé, seus comentários nos levam a refletir profundamente sobre nossa condição de Igreja.

Defesa da Fé – O senhor obteve recentemente seu Ph.D. em Estudos Inter-Culturais. Qual foi a tese que defendeu?

Luís Wesley – O tema foi “As Assembléias de Deus no Brasil: Lições em Indigenização”. A tese em torno do assunto é que as Assembléias de Deus, em sua teologia e prática de missão, tornou-se autóctone no Brasil, primariamente por sua capacidade de contextualizar linguagem e métodos, segundo por tornar-se cultural, espiritual e emocionalmente relevante ao povo brasileiro, terceiro por gerar uma identidade cristã intimamente conectada às formas e significados da cultura brasileira, e quarto por responder às necessidades de um povo em luta por sobrevivência sócio-econômica.

Defesa da Fé – Como pastor metodista, porque a iniciativa de estudar as Assembléias de Deus?

Wesley – Por duas razões básicas. A primeira tem a ver com o próprio fato de ser metodista. Foi esta mesma tradição wesleyana que me ensinou e me deu espaços para experimentar, na prática, o seguintes pensamentos: “No fundamental, unidade; no secundário, liberdade; acima de tudo o amor” e “Não importa a igreja que tu vais, se atrás do calvário tu estás; se o teu coração é igual ao meu, dá-me a mão pois meu tu és”. A segunda refere-se ao desejo que sempre tenho de ir para além do que é aparente e óbvio. Ou seja, fui motivado pela pura curiosidade investigativa.

Defesa da Fé – Em sua opinião, o pentecostalismo foi discriminado pelas igrejas tradicionais?

Wesley – O pentecostalismo clássico, particularmente o que é representado pelas Assembléias de Deus, recebeu muita crítica das igrejas históricas. Uma pequena parte destas críticas é consistente e, eventualmente, sustentável. Contudo, muitas críticas são infundadas e resultaram do marcante preconceito e resistência, não contra a teologia pentecostal, mas predominantemente contra o estilo, a linguagem, a estética, a música e a experiência pentecostal, já que estes últimos acabaram por influenciar e, em última análise, questionar e ameaçar o status quo do protestantismo de tradição histórica. Interessantemente, as maiores críticas surgiram no momento em que ficou clara a resposta do povo brasileiro à mensagem pentecostal clássica, o que denunciou algumas fraquezas missiológicas das igrejas históricas, tais como: a dificuldade em traduzir, na prática, o discurso da contextualização; o alto grau de irrelevância à realidade e ao jeito brasileiro de ser, incluindo aqui nossa cultura, espiritualidade e estrutura emocional na experiência religiosa; a eqüidistância ou mesmo desconexão em relação aos símbolos e significados culturais e a ineficácia quanto a dar uma resposta pertinente às necessidades do pobre. Tais fraquezas, se um dia discernidas, não foram, contudo, admitidas e corrigidas pelos históricos, restando apenas o criticismo reativo contra os pentecostais.

Defesa da Fé – E pelos seus estudos, quais as lições a serem aprendidas desta denominação e do pentecostalismo?

Wesley – São muitas, algumas das quais são lições que desaprendemos de nós mesmos! Meu estudo deteve-se em cinco lições. A primeira refere-se à importância do ministério de leigos (laicato) na vida da Igreja. A experiência das Assembléias de Deus no Brasil nos ensina que a essência da formação de uma igreja autóctone que vivencia o cristianismo é sua radical confiança de que, sob a orientação e capacitação do Espírito Santo, o povo de Deus é capaz de fazer o trabalho, de levar a cabo o ministério da Igreja. O clero não é encarado como prioridade, embora admitam que líderes fortes e equilibrados sejam necessários para facilitar o ministério da Igreja. A segunda é que, nesse processo, a linguagem e a metodologia são determinadas pelos participantes leigos. É crucial que, desde o início, o evangelho seja comunicado de uma maneira simples e culturalmente compreensível, tanto metodologicamente quanto lingüisticamente. Formulações estrangeiras de terminologias teológicas e/ou de modelos estratégicos devem ser submetidos aos e avaliados pelos nacionais (“insiders”) logo no estágio nascente ou inicial das iniciativas missionárias. A terceira lição é que, no contexto latino-americano, notavelmente no Brasil, não é suficiente que a proclamação do evangelho e o ministério da Igreja sejam socialmente relevante. A mensagem e ministério tem que estar culturalmente, espiritualmente e emocionalmente adaptada. A quarta lição aprendida tem a ver com o fato de que o contato com o povo, definitivamente não em termos discursivos, capacita a Igreja a levar uma mensagem do evangelho que “cola” no povo brasileiro e causa ressonância relevante em seus corações, cultura e contextos demandantes. Uma quinta lição que podemos aprender da experiência das Assembléias de Deus é que a Igreja tem que ser o lugar onde o pobre se sente em casa. Pobreza não está aí pra ser ignorada ou negligenciada pela vida e missão da Igreja. Pelo contrário, a Igreja é a comunidade que vive junto ao pobre. Mais do que isto: a menos que a Igreja tenha compaixão do pobre, ela jamais refletirá o amor e a misericórdia de Deus. Nenhuma Igreja deveria esquecer o poder transformador de Deus na vida de indivíduos e na sociedade.

Defesa da Fé – Por quê o movimento que se iniciou na famosa Rua Azusa (EUA) se deu melhor no Brasil, e como ele se expressa no resto do mundo?

Wesley – Basicamente porque aqui no Brasil, mais do que em qualquer outro lugar do mundo, o movimento pentecostal encontrou ressonância impar na cultura e na cosmovisão do povo brasileiro, e se tornou popular. O pentecostalismo clássico foi capaz de traduzir a fé cristã em experiência cotidiana pessoal e comunitária, em religiosidade popular séria e comprometida.

Defesa da Fé – E quanto ao chamado néo-pentecostalismo?

Wesley – Quando falamos de néo-pentecostalismo a gente se refere à terceira onda de novas igrejas pentecostais que, aparentemente, domina a cena nos dias de hoje. Seu início ocorreu durante os anos agonizantes da ditadura militar – final dos anos 70 e início dos 80. Embora as igrejas néo-pentecostais não tenham sido objeto do meu estudo, reconheço que, a exemplo do que ocorreu com o pentecostalismo clássico (primeira onda), e com o pentecostalismo deutero-clássico (segunda onda), o néo-pentecostalismo provou uma vez mais que o movimento pentecostal tem uma marcante capacidade de se recriar – de se “reinventar”, como diria o Paul Freston – de tempos em tempos no compasso das significativas transformações da sociedade e da cultura brasileira.

Defesa da Fé – Seria este fenômeno religioso e evangélico relevante no momento, de um ponto de vista teológico e estratégico, e que poderá vir a ser teses num futuro próximo?

Wesley – O néo-pentecostalismo brasileiro já tem sido objeto de estudos extensos por parte de pesquisadores nacionais e estrangeiros. Há mais estudos hoje sobre o neo-pentecostalismo do que sobre o clássico. Devemos reconhecer também que há aspectos de clara pertinência na vida comunitária e no conteúdo da mensagem proclamada por igrejas neo-pentecostais. Dentro delas um enorme contingente de pessoas tem encontrado respostas às suas necessidades básicas, solução para os seus problemas e lastro para a reconstrução da vida. Muita gente tem reencontrado a dignidade de vida em igrejas néo-pentecostais. Uma das marcas de um cristianismo autêntico está em sua capacidade de, em nome de Jesus, no poder do Espírito Santo e em obediência às Escrituras, devolver aos seus convertidos a integralidade e a dignidade humana com a qual e para a qual foram criados. Ao meu ver, contudo, é no néo-pentecostalismo onde se encontram as maiores vulnerabilidades teológicas, estratégicas e éticas da Igreja brasileira.

Defesa da Fé – E fora do Brasil?

Wesley – O neo-pentecostalismo é o grupo protestante brasileiro que mais se expande fora do país.

Defesa da Fé – No Brasil, e mesmo em termos mundiais, os pentecostais são esmagadoramente mais numerosos do que os crentes tradicionais. O que este fato indica para o senhor?

Wesley – O pentecostalismo chegou ao Brasil cerca de 70 anos depois das primeiras tentativas missionárias feitas pelas igrejas de tradição histórica neste país. Menos de duas décadas após estabelecerem-se, os pentecostais tornaram-se numericamente maiores que todas as igrejas históricas juntas. O que isto indica senão que as igrejas pentecostais foram mais efetivos em plantar e vivenciar um cristianismo nativo.

Defesa da Fé – Por que o senhor buscou formação fora do Brasil? Não há o risco da descontextualização?

Wesley – Recebi formação teológica em nível de bacharelato aqui mesmo no Brasil. Após treze anos de trabalho pastoral, quando vi a necessidade de fazer estudos avançados, percebi o quão perto do impossível era encontrar o apoio institucional e financeiro de que precisava para estudar dentro do meu próprio país. Além do mais, na época não havia aqui o curso do meu interesse. Quanto ao risco de se descontextualizar quando se estuda fora, ele existe, sim, mas é relativo em muitos aspectos. Mesmo dentro do país um estudante paranaense ou pernambucano, por exemplo, pode ir estudar em São Paulo ou Rio de Janeiro e se descontextualizar completamente. Quem não conhece casos assim? Da mesma forma, isto pode ocorrer com os que saem do país. Eu, porém, a exemplo de muitos outros, não sucumbi neste risco. Para diminuir o perigo, a primeira coisa que fiz foi escolher uma escola que respeitasse minhas origens e que soubesse nutrir minha identidade e heranças sociais, culturais e confessionais. Fui feliz na escolha: a E. Stanley Jones School of World Mission and Evangelism, no Asbury Theological Seminary, é inequivocamente intencional no que tange a ajudar o aluno à não se desconectar. Esta escola estimula o estudante a refletir e produzir a partir de e para o seu próprio contexto. Eu aprendi a “fazer exegese” do meu contexto brasileiro e a não negligenciá-lo. Interessantemente, foi precisamente fora do país que aprendi a amar mais a cultura à qual pertenço. Ao meu ver, o risco da descontextualização é mais agudo quando a pessoa permite, por exemplo, que a sua identidade sócio-cultural seja drenada pelas seduções do primeiro mundo.

Defesa da Fé – O que é fazer teologia a partir de um contexto cultural específico, e quais as implicações disso na interpretação das escrituras?

Wesley – É conhecer bem o texto, os princípios que dele emergem e os respectivos contextos culturais das Escrituras. Ao mesmo tempo, é preciso conhecer o contexto cultural contemporâneo específico. Tal conhecimento virá com a vivência e diálogo com os participantes deste dado contexto. Enquanto isso é necessário que se construa uma “ponte hermenêutica” (como sugeriu Paul Hiebert) entre o texto bíblico e o contexto específico. Em minha formação wesleyana aprendi também que o conhecimento religioso ou labor teológico tem as seguintes fontes: em primeira e última instância está a revelação bíblica. A história, a razão, a experiência e a criação nos ajudam a elucidar as escrituras e a contextualizá-la de tal forma que a mensagem possa ser entendida e responsiva à totalidade a vida humana.

Defesa da Fé – Como o senhor vê a educação teológica no Brasil?

Wesley – Penso que temos boas escolas teológicas. O que precisamos, contudo, é oferecer uma melhor e mais ampla formação missiológico-pastoral fundamentada bíblica e contextualmente, que contemple o diálogo trans-confessional e que desenvolva uma teologia prática para hoje.

Defesa da Fé – E quanto ao reconhecimento desta junto ao MEC?

Wesley – Sou docente de uma escola – a Faculdade Teológica Sul Americana – que já possui a autorização do MEC e está às portas de receber o reconhecimento do mesmo órgão governamental. No caso da FTSA, não vejo indícios de que isto tenha afetado ou venha a afetar negativamente a formação integral dos nossos futuros pastores e pastoras.

Defesa da Fé – O que muda, em termos ministeriais um doutorado em teologia?

Wesley – Creio que aumenta a responsabilidade ética e moral de se continuar simples, humilde e ministerialmente conectado com as bases da Igreja em sua vida e missão. Um doutorado não pode se tornar um estilo de vida, mais uma forma adicional de servir a Deus, ao Seu povo e à sociedade. Um doutorado não substitui a cruz nem a experimentação da vida nova em Cristo. Dou graças ao meu Senhor porque sou o que sou e faço o que faço, não por causa do acesso que tenho ao conhecimento ou pelo título que acabo de receber, mais por pura graça e misericórdia d’Aquele que um dia me achou, me comprou e me colocou num mesmo corpo, em Cristo Jesus, no qual temos vida e todas as coisas da parte do Pai.

Defesa da Fé – Há poucos teólogos genuinamente brasileiros.

Wesley – Não, há muitos teólogos brasileiros. Alguns, porém, não aprenderam ou esqueceram-se de como se faz uma teologia bíblica e brasileira. Do que mais precisamos no momento, entretanto, é de mais missiólogos brasileiros.

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