Verbo



Fantasias e dogmas


Por Roberto do Amaral Silva

O apóstolo Pedro foi o primeiro papa? Foi sepultado na Basílica de São Pedro? Quem foi, afinal, o primeiro papa?

São justamente essas as perguntas que ganham vulto na imprensa. Entretanto, o que a mídia publica sobre o assunto é, quase sempre, conforme a visão teológica e histórica da própria Igreja Católica Romana.

Interessante é que alguns teólogos católicos não concordam com certos posicionamentos do próprio catolicismo. Hans Küng, teólogo católico suíço, é um exemplo do que estamos falando. Em seu livro, Igreja Católica, nos traz alguns desses questionamentos.

Autor de várias obras, Küng foi nomeado pelo então papa João XXIII consultor teológico para o Concílio Vaticano II. Mas, por questionar as doutrinas tradicionais, foi proibido de lecionar na qualidade de teólogo católico, sob o pontificado de João Paulo II.

Vejamos os arejados trechos de seu livro, que muito nos ajuda a entender o que a imprensa unilateral informa.

O apóstolo Pedro foi o primeiro papa?

Contrariando a interpretação tradicional de que Pedro é a rocha sobre a qual a Igreja é erguida, o teólogo suíço, escreveu: “Não há qualquer evidência de um sucessor de Pedro (também em Roma) no Novo Testamento. De qualquer forma, a lógica da fé de Pedro em Cristo (e não a fé em qualquer sucessor) deveria ser e permanecer a base constante da Igreja”. E, ainda: “... O inescrupuloso bispo Damaso (366-384) foi o primeiro a usar a frase de Mateus (16.18-20) sobre a pedra (que ele entendeu num sentido legalista) para respaldar reivindicação ao poder”.

Afinal, Pedro é a pedra, a rocha firme? Para Küng, parece que não, pois, apesar de Pedro ser o porta-voz dos discípulos, “sua deficiência em compreender, sua covardia e, finalmente, sua fuga”, relatadas nos evangelhos, depõe contra a firmeza exigida para ser uma rocha inabalável, sobre a qual se possa edificar a Igreja do Senhor Jesus.

E se Pedro não foi o primeiro papa, quem é que iniciou o papado?

Conforme ensina Küng, “o bispo Sírico (384-399) foi o primeiro a se intitular ‘papa’”. A verdade é que o papado romano não se fez em um dia. Conscientes de seu poder, os bispos de Roma dos séculos 4o e 5o caminharam na direção de uma supremacia universal. Para isso, desenvolveram argumentos bíblicos e teológicos que, com o passar dos séculos, se tornaram dogmas incontestáveis.

Leão I (440-461) é quem de fato recebeu o título de “papa” no sentido atual do termo, conforme historiadores. Seu prestígio legendário como papa teve início quando teria persuadido Átila, rei dos hunos, a deixar a Itália, sem saquear Roma, no início do ano 450 a.C., aproximadamente, quatro séculos depois de Pedro.

O historiador Henry Loyon diz que os sermões e escritos de Leão I forneceram a base teórica para justificar o papado. Primeiramente, Leão I afirmava que a primazia de Pedro se assentava no Novo Testamento. Para ele, as passagens clássicas relativas a esse apóstolo, “no sentido cruamente legalista de uma ‘plenitude de poder’ (plenitudo potestatis) concedida a Pedro”, justificavam uma primazia de poder sobre todos os bispos.

Leão I acreditava, ainda, que Pedro falava pessoalmente por meio de sua pessoa. Crendo-se sucessor do apóstolo, e primeiro bispo de Roma a ser chamado de pontifex maximus, título anteriormente reservado ao sumo sacerdote pagão, Leão I conseguiu até convencer o imperador da Roma ocidental a reconhecer sua primazia.

Durante o funeral de João Paulo II, a imprensa divulgou fartamente o sepultamento na Basílica de São Pedro, onde, supostamente, estão os restos mortais do apóstolo Pedro. No entanto, destaca Küng, o Novo Testamento não diz, em parte alguma, que Pedro esteve em Roma.

Para dar credibilidade histórica à tradição, o papa Pio XII, após a Segunda Guerra Mundial, ordenou a escavação sob a basílica. E, em 1965, com base em alguns fragmentos de ossos encontrados num relicário, o papa Paulo VI declarou serem de Pedro. Conforme o historiador católico Duffy, “não se pode garantir que sejam do apóstolo Pedro, mesmo porque os criminosos executados geralmente eram enterrados em valas comuns sem sinalização”.

Hans Küng confirma o historiador Duffy: “A arqueologia não foi capaz de identificar sua tumba debaixo da atual basílica do Vaticano”. Segundo Küng, Leão I foi o primeiro bispo de Roma, portanto, o primeiro papa a ser enterrado sob a Basílica romana.

Todas essas considerações apreciadas e ponderadas nos revelam, sem grandes esforços, que tais mitos católicos não são unânimes nem mesmo entre os pensadores católicos, fato que, muitas vezes, é camuflado pela mídia secular e tendenciosa.

Lamentavelmente, parece que a imprensa (preocupada com o Ibope) não se precaveu contra a falácia de noticiar “mito” como se fosse “fato”.


Fontes:

1 Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.

2 Duffy, Eamon. Santos e pecadores: história dos papas. São Paulo: Cosac & Naify, 1998, p. 6.

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